“A Nath que escreve e entende de gramática” virou quase meu nome completo. Tanto que, em muitos contextos, essa minha devoção à escrita e à língua portuguesa chegam antes de mim, quando comento minha admiração por determinada escolha de palavras ou vibro diante de um texto com vírgulas bem colocadas.
Normalmente, as pessoas pensam em duas possibilidades: que segui um caminho linear de educação e formação profissional para me tornar tão familiarizada com nossa língua ou que nasci com essa habilidade, como algo quase místico.
Mas e se eu contasse que essa paixão nasceu de um evento traumático?
O trauma
Lembro com nitidez do dia em que a garotinha sonhadora entrou no pátio da escola nova, respondendo ao sorriso do velho porteiro e respirando o cheiro de tinta e organização. Ela se sentia quase uma personagem de contos de fadas com a saia vermelha do uniforme, que fazia um movimento tão bonito quando rodava.
Havia feito o que na época era a primeira série em uma escola do bairro. Mas, agora, os pais desejavam oferecer um “ensino melhor”, em uma escola particular.
Se na antiga escola a garotinha era uma entre os poucos alunos com a habilidade de ler, na nova, estava atrás de toda a turma que, além de conhecer a magia de formar palavras, sabia o que era parágrafo, vírgula, pontuação.
E não demorou para que todos a descobrissem.
A professora lia sua lição de casa na frente da turma, expondo os erros ortográficos e provocando gargalhadas na sala. Sentindo o corpo queimar de vergonha, a menina se encolhia na carteira, fingindo rir também, enquanto escondia os olhos marejados.
Em casa, o momento de fazer as tarefas também não passava sem lágrimas e garganta apertada. As palavras no livro pareciam fazer cada vez menos sentido, ao passo em que já pensava no dia seguinte, quando sua falta de inteligência se tornaria motivo de piada.
A mãe, assistindo à agonia, decidiu ir à escola. Porque “o jeito dessa professora já está me irritando”.
Então, na inocência e no desespero de evitar que a reunião com a mãe piorasse ainda mais a relação com a professora, a garotinha pegou um post-it e escreveu um bilhete, com caneta vermelha.
Dizia mais ou menos assim:
“Querida Tia Fulana peço desculpas por cometer tantos erros estou realmente tentando mas é difícil peço que tenha paciência comigo porque tudo é novidade. ❤️”
Sem pontuação mesmo, refletindo a falta de conhecimento tanto quanto a confusão em sua cabeça.
Até assinou com um coração, na esperança de amolecer o da professora. Então, confiou o bilhete à mãe, para ser entregue ao destinatário na manhã seguinte.
Enquanto a reunião acontecia, a menina manteve os olhos fixos na carteira, tentando controlar o coração acelerado e fazendo todo o possível para não vomitar.
E se a professora ficasse ainda mais brava?
E se não adiantasse, porque ela simplesmente não era inteligente, era incapaz de entender a maldita gramática?
A Tia Fulana passou pela porta com a testa franzida e olhos fixos no chão. Ao sentar-se em sua cadeira, chamou a aluna para conversar.
A garota se surpreendeu ao ver que, agora, eram os olhos da professora que se enchiam de lágrimas. Ela disse algo como:
“Pego no seu pé porque gosto de você e sei que pode aprender. Mas terei mais paciência”.
Na altura dos 8 anos de idade, a justificativa pareceu perfeitamente aceitável para a menina, que sorriu ao criar esperanças do fim do ciclo de frustração e vergonha.
A professora parou de expor os erros. Em vez disso, chamava a aluna para conversar sobre os exercícios, explicando como corrigí-los, com a voz serena e encorajadora.
A garotinha não entendeu direito como aconteceu a mudança em seus sentimentos em relação à escrita e às regras da língua. Mas lembra que, no fim daquele ano, a escola fez uma pesquisa sobre quais eram as disciplinas favoritas de cada aluno.
Quando chegou sua vez, ela respondeu “português”. E só então percebeu que era a primeira vez que pensava sobre aquilo.
Ela não só aprendeu, como se apaixonou
Começou a achar a coisa mais linda organizar ideias em parágrafos, transformar sentidos com vírgulas. E que incrível era classificar uma oração como subordinada subjetiva!
Ela não sabe como não ficou traumatizada e convencida a nunca mais escrever. Em vez disso, seus cadernos conheceram dezenas de histórias reais e inventadas. E seus colegas de sala mais próximos foram leitores assíduos.
E essa é mais uma história que ela tem a oportunidade de contar, depois de se tornar jornalista, mestre em Letras, redatora e revisora.
Não só isso - ela até passou a escrever cartas, ao precisar ter conversas difíceis. Derramar no papel seu terror diante de desafios aparentemente invencíveis e, nas palavras, descobriu-se mais forte.
Ela descobriu o poder das palavras para criar armaduras ao redor de si mesma, inspirar-se e, então, inspirar e contagiar outras pessoas.
Tudo isso depois de a mãe e seu bilhete no post-it terem evitado que um evento traumático se transformasse em cicatriz, na melhor das hipóteses.
Destino? Acaso?
Não sei dizer porque, nesse caso, o trauma virou paixão. O mesmo não aconteceu com a matemática, por exemplo, depois que tirei minha primeira nota vermelha e não consegui me reaproximar dos números como das letras.
Qual seria a diferença entre os dois episódios?
Por que, às vezes, o trauma vira paixão e outras, não? Talvez algum neurocientista tenha uma explicação mais precisa sobre como nossos cérebros são afetados de diferentes formas a cada estímulo. E desenvolve preferências naturais.
Mas, seja qual for a explicação, essas histórias me fazem pensar em algo: talvez a coisa que mais nos cause pânico possa nos surpreender.
Ou não. Talvez seja só o que parece mesmo.
Mas pode ser que a gente tenha a chance de agir antes de um evento doloroso se tornar uma cicatriz ou para sempre nos paralisar diante de oportunidades e descobertas.
Já parou para pensar na razão dos seus principais bloqueios? Eles têm alguma história? E se o enredo fosse outro? E se alguém, como minha mãe fez na época, fosse capaz de um ato heróico para impedir o trauma?
Será que agora, mesmo depois de anos, você não pode pegar sua versão do passado pela mão e ser o herói de si mesmo? Quem poderia te ajudar?
É possível que, mesmo não desaparecendo, o monstro fique menos assustador. Se não der certo, pelo menos você terá a chance de acolher sua versão do passado como talvez ninguém tenha feito.
Pode abraçá-la e ter com ela uma longa conversa, tentando alcançar, se não a cura, ao menos a reconciliação.
De qualquer forma, vale a pena oferecer a si mesmo a possibilidade de se provar capaz de vencer fantasmas antigos. Afinal, olhar debaixo da cama é a única forma de saber se os monstros são realmente como nossa imaginação assustada pintou.
Ninguém sabe o que pode acontecer. De repente, o trauma pode virar paixão, liberdade. Até profissão.
Obrigada por ler até o final!
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Eu normalmente detesto a romantização de abusos, afinal o que nós enxergamos como "o lado bom do trauma" foi a forma que lidamos com ele e evoluímos. O trauma em si não trouxe nada bom, e eu sinto muito que você tenha passado por isso quando criança.
No seu caso, talvez o que tenha diferenciado sua experiência com português com a da matemática seja a mistura entre afinidade com o tema e a mudança de atitude da professora, que fez toda a diferença. De todo modo, fico feliz que encontrou realização na língua portuguesa apesar do trauma ❤
Texto lindíssimo! <3